A maioria que consome drogas o faz esporadicamente ou de modo transitório. Por outro lado, uma minoria significativa utiliza-as de forma intensa e por longos períodos de tempo. Esses últimos quase sempre necessitam de algum tipo de apoio formal do Estado: de intervenções breves a abordagens intensivas e especializadas, de caráter ambulatorial ou de internação, seja voluntária, involuntária ou compulsória. Nesse contexto de grande diversidade e complexidade, políticas públicas de qualidade devem ser capazes de atender tanto às necessidades desse grupo heterogêneo de usuários, quanto à sociedade como um todo, que sente direta ou indiretamente o impacto do uso de drogas lícitas e ilícitas de seus cidadãos.
Os níveis de abrangência dessas políticas podem ser comparadas a uma pirâmide: na base, estão as ações gerais de saúde pública. As medidas de bem-estar social, de prevenção ao uso de drogas e o binômio proibição/legalização do uso de drogas estão posicionados aqui. Na porção intermediária, há as ações destinadas ao usuário de alto-risco, de grande valia tanto para este quanto para o seu entorno social. É o caso tanto das políticas de redução de danos, como troca de seringas, quanto as abordagens de caráter interventivo, como os testes de drogas e justiça terapêutica. Por fim, no topo da pirâmide, encontra-se o tratamento, destinado à minoria de usuários com problemas.
Nos últimos tempos, ventos favoráveis à descriminalização do porte e do comércio de drogas ilícitas têm soprado sobre essa pirâmide, com o intuito de arrancar dali todos os tijolos outrora assentados pelo modelo proibicionista, por considerá-lo arbitrário, oneroso e fomentador de máfias e de violência. Não se trata de discutir aqui os ônus e os bônus dessa nova tendência – mesmo porque as recentes experiências de regulamentação da produção e do comércio de canábis no Uruguai e em alguns estados americanos logo transformarão especulações em evidências científicas.
No entanto, dois aspectos quase sempre passam despercebidos: o primeiro, que a ‘onda proibicionista’, com seus arroubos de ingenuidade, radicalizações e fracassos, foi a primeira tentativa secularizada de normatizar o consumo massificado de substâncias psicoativas, as quais, por volta de 1850, haviam sido convertidas pelo modo produção capitalista em commodities e produtos manufaturados cada vez mais concentrados, baratos e facilmente acessíveis.
Nesse sentido, deixou um legado que se materializaria mais tarde nas políticas públicas baseadas no controle da oferta e da demanda, tais como a taxação das bebidas alcoólicas e do tabaco, o controle da densidade dos pontos de venda de álcool, fechamento de bares durante à noite, a restrição à venda de bebidas para menores de idade e a proibição da propaganda; medidas que definitivamente amenizaram o impacto negativo relacionados ao consumo dessas substâncias para a sociedade, além de serem evocadas na atualidade como ‘as garantias’ de que a legalização de novas drogas será um processo seguro e dotado apenas de benefícios – o seu ‘cinto de segurança’ contra colisões repentinas e indesejadas.
Em segundo, que a atividade de tratamento, que ocupa o topo da pirâmide das políticas públicas e se dirige mais especificamente ao indivíduo-usuário-de-drogas do que à sociedade como um todo, não é uma forma de controle ou de punição, mas sim um plano estruturado e voltado para a reinserção psicossocial do dependente, portador de um transtorno mental – denominado dependência química –, mas quase sempre associado a outros. Tal patologia pode acometer tanto usuários de substâncias ilícitas, quanto de lícitas. Por mais que o status legal da substância e o acesso do usuário à cidadania interfiram no momento e na forma com que se dá a busca pelo tratamento, o mesmo não pertenceria ao campo da saúde, se esse aspecto também não estivesse diretamente envolvido.
No entanto, uma porção significativa do pensamento brasileiro ainda confunde os princípios estruturantes do tratamento da dependência química – tais como a combinação de rotinas, os protocolos medicamentosos, os contratos terapêuticos, a internação para desintoxicação e demais condutas profissionais – com os preceitos dos anos de ferro da ditadura ou com o mundo polarizado da guerra-fria. Nesse contexto, o psiquiatra aparece travestido de calabouceiro sanguinário, capitão-do-mato dos interesses privados dos neomanicômios, enquanto o usuário é visto como um outsider subjugado e torturado, que desejaria continuar usando drogas eventualmente, mas é oprimido impiedosamente pelos douto-pregadores-da-abstinência-como-meta. Quanta confusão!
Assim, os desinformados (e os mal-intencionados) tomam o contexto de duas formas (igualmente equivocadas): a primeira, vê o usuário como um oprimido, que está sendo forçado a parar, mas “não quer e não está tão mal como dizem”. Assim, sem perceber que na maior parte das vezes foi o próprio usuário que buscou ajuda para parar de usar drogas, alforriam-no com argumentos como “já que as drogas também podem ser uma forma de lazer, basta o usá-las com esse propósito”. Pronto, um dependente – ou melhor – um prisioneiro a menos!
Outros, igualmente fechando os olhos para presença do transtorno psiquiátrico “dependência química”, preferem dizer que “o tratamento não funciona” ou “só funciona para uma minoria: vinte, trinta por cento dos casos” – desse modo, o melhor a fazer é ajuda-lo a usar drogas de uma forma menos danosa. Isso é no mínimo, uma crueldade. Considerando que muitos tratamentos tem um grau eficácia menor do que esse – por exemplo, no caso de alguns cânceres ou doenças autoimunes –, deveríamos então nos preocupar em reduzir o seu impacto deletério sobre a saúde e desistir de tentar combatê-lo, ainda que de forma paliativa? Ainda que o paciente esteja disposto a isso?
O tratamento da dependência química não é guerra às drogas e a ideia da abstinência como meta não é a utopia de um mundo livre de drogas. Pelo contrário, ambos são uma carta de intenções e princípios que norteiam um processo humano de mudança cheio de entreveros, fracassos e reformulações de planos, com o intuito de transformar positivamente o relacionamento do usuário consigo e com mundo onde vive e no qual deseja se reinserir na condição de cidadão efetivo. Creio que essa, sim, seja uma utopia de todos nós.
* Dr. Marcelo Ribeiro, médico psiquiatra, diretor técnico do CRATOD (Centro de Referência de Álcool, Tabaco e Outras Drogas), professor afiliado da UNIFESP (Universidade Federal de São Paulo), diretor da UNIAD (Unidade de Pesquisa em Álcool e Drogas), pesquisador do INPAD (Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Políticas Públicas de Álcool e Outras Drogas).
Fonte: Blog Palimpsesto