O comportamento de apostas vem se consolidando como um fenômeno de alta relevância no Brasil nos últimos anos, impulsionado pela ampla oferta de jogos e pela crescente presença de plataformas digitais.
Nesse contexto, compreender a prevalência, os fatores de risco e os impactos sobre a saúde mental é fundamental para orientar políticas públicas eficazes.
O III Levantamento Nacional de Álcool e Drogas (LENAD III), conduzido pela Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP) em parceria com a Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas e Gestão de Ativos (SENAD), fornece evidências inéditas sobre jogos de azar no país, oferecendo um retrato detalhado da situação atual.
Panorama atual: dados de prevalência no Brasil
O LENAD III entrevistou 16.608 brasileiros com 14 anos ou mais, incluindo uma subamostra de 4.914 pessoas dedicada a jogos de apostas.
Veja abaixo alguns dos principais resultados encontrados na pesquisa
- 25,9% da população já apostou em algum momento da vida.
- 17,6% apostaram nos últimos 12 meses, equivalente a mais de 28 milhões de brasileiros.
- As modalidades mais comuns:
- Loterias tradicionais – 71,3%
- Apostas esportivas digitais (“bets”) – 32,1%
- Jogo do bicho – 28,9%
- Raspadinhas – 18,8%
- Jogos de cassino – 12,4%
O perfil do apostador também chama atenção: 64,8% são homens e 35,2% mulheres, com predominância na faixa etária de 25 a 49 anos (50,6%).
Entre adolescentes (14 a 17 anos), 10,5% já apostaram no último ano, mesmo após a proibição legal sancionada em 2023, o que equivale a cerca de 1,4 milhão de jovens expostos precocemente.
Quando o lazer se transforma em risco: dependência psicológica
O Transtorno do Jogo (TJ) é reconhecido como dependência comportamental no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais – quinta edição (DSM-5). Diferente das adições químicas, não envolve substâncias psicoativas, mas apresenta elementos semelhantes: perda de controle, compulsividade e sofrimento emocional.
O LENAD III utilizou a escala internacional PGSI (Problem Gambling Severity Index) classificando os apostadores em quatro níveis: sem risco, baixo risco, risco moderado e jogo problemático.
Resultados:
- 7,3% da população apresenta comportamento de risco ou problemático, cerca de 10,9 milhões de brasileiros.
- 0,8% já atinge critérios compatíveis com diagnóstico clínico, cerca de 1,4 milhão de pessoas.
- Entre os que apostaram no último ano, 38,6% apresentam algum grau de risco.
- 4,4% já podem ter desenvolvido a condição clínica completa.
Os sinais mais frequentes incluem:
- Tentativas de recuperar perdas.
- Gastos além do planejado.
- Sentimentos de culpa.
- Interferência na vida familiar e social.
Perfil sociodemográfico: renda, escolaridade e região
- Escolaridade: a maioria dos apostadores têm ensino médio completo ou incompleto (42,9%), enquanto 26,7% têm ensino superior.
- Renda: quanto menor a renda, maior o risco:
- Inferior a 1 salário-mínimo: 52,8% apresentam jogo de risco ou problemático.
- De 1 a 2 salários: 31,2%.
- Acima de 2 salários: 21,1%.
- Região:
- Nordeste: 52,3% dos apostadores apresentam risco ou comportamento problemático.
- Norte: 46,2%.
- Sudeste: 35,3%.
- Centro-Oeste: 29,8%.
- Sul: 28,0% menor índice de jogo problemático, apesar de ser a região com maior prevalência de apostadores no último ano (20,4%).
Esse contraste mostra um desequilíbrio regional: no Nordeste, menos pessoas apostam (16,3%), mas a proporção de jogadores problemáticos é a mais alta.
Endividamento e impacto financeiro
Entre os apostadores que jogaram no último ano:
- 1,9% relataram pedir dinheiro emprestado ou vender algo para apostar “às vezes”.
- 7,3% disseram fazer isso “na maioria das vezes ou quase sempre”.
- 3,8% apontaram problemas financeiros decorrentes das apostas “às vezes”, e 2,6% “na maioria das vezes ou quase sempre”.
Durante a pandemia, 70% dos apostadores disseram que seus gastos não mudaram, 15,7% pararam de gastar, 9,8% diminuíram e 2,6% aumentaram os gastos.
A força das plataformas digitais
- As loterias físicas ainda são as mais comuns, mas os sites de apostas esportivas já são utilizados por 9 milhões de brasileiros (5,6% da população total).
- A prevalência de jogo de risco ou problemático é muito maior entre usuários de “bets”: 66,8% apresentam risco, contra 26,8% entre os demais.
Isso mostra que as características das plataformas digitais, facilidade de acesso, repetição rápida e sensação ilusória de controle, favorecem padrões compulsivos.
Comparação internacional
O LENAD III adotou a escala PGSI, o que permite comparações globais.
Na Espanha, por exemplo, dois anos após a legalização das apostas online, a prevalência de Transtorno do Jogo entre jovens subiu de 3,8% para 16%.
O cenário brasileiro segue a mesma tendência internacional de rápida expansão e aumento dos comportamentos de risco.
Impactos na saúde mental
O comportamento problemático com jogos está diretamente ligado a:
- Ansiedade e estresse crônico.
- Isolamento social.
- Conflitos familiares.
- Sofrimento emocional persistente.
Os grupos mais vulneráveis são:
- Adolescentes: 55,2% apresentam comportamento de risco ou problemático.
- Pessoas com renda inferior a 1 salário-mínimo: prevalência de 52,8%.
- Usuários de plataformas digitais: 66,8% em risco.
Estratégias de prevenção e políticas públicas
O LENAD III destaca a necessidade de políticas amplas, que vão além do discurso de “jogo responsável”:
- Regulação da publicidade de jogos e apostas.
- Supervisão rigorosa das plataformas digitais, com restrições reais a menores de idade.
- Campanhas públicas de conscientização sobre riscos.
- Capacitação da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) para acolhimento especializado.
- Investimento em pesquisa e monitoramento epidemiológico.
Considerações finais
O LENAD III revela que os jogos de azar deixaram de ser uma prática marginal para se tornarem uma realidade consolidada na vida de milhões de brasileiros.
Com mais de 28 milhões de apostadores ativos no último ano, sendo 10,9 milhões em risco e 1,4 milhão já com critérios clínicos, o impacto é profundo e exige respostas imediatas.
A regulação do setor, a ampliação do cuidado em saúde mental e a criação de campanhas educativas são medidas urgentes para reduzir os danos.
Perguntas frequentes (FAQ)
O que é o Levantamento Nacional de Álcool e Drogas (LENAD)?
É uma pesquisa nacional da UNIFESP, feita por entrevistas domiciliares, que avalia o uso de álcool, drogas e comportamentos aditivos como jogos de aposta.
Quantos brasileiros estão em risco com jogos de azar?
Cerca de 10,9 milhões de pessoas (7,3% da população com 14 anos ou mais). Aproximadamente 1,4 milhão já se enquadra nos critérios clínicos de Transtorno do Jogo.
Quais grupos são mais vulneráveis?
Adolescentes, pessoas de baixa renda e usuários de plataformas digitais, todos com índices acima de 50% de risco.
Qual a situação regional?
O Sul tem mais apostadores, mas menos casos problemáticos. O Nordeste, ao contrário, tem menos apostadores, mas a maior proporção de risco (52,3%).
Como isso se compara a outros países?
Na Espanha, após a legalização das apostas online, os jovens com transtorno do jogo passaram de 3,8% para 16% em apenas dois anos. O Brasil segue tendência similar.
Fonte = LENAD – Levantamento Nacional de Álcools e Drogas (Jogos de apostas na população brasileira)









