“As mulheres devem passar grande parte da vida em casa, cuidando dos filhos e cozinhando. Não podem andar desacompanhadas, devem estudar apenas o necessário, e não trabalhar se forem casadas. Coisas como carreira, dinheiro e poder são atribuições exclusivas do homem.”
Longe de significar um dogma de alguma seita radical, essa era a condição da mulher na sociedade europeia do início do século XIX. Com a eclosão da Primeira Guerra Mundial e com a convocação de todos os homens sadios para o front, mulheres foram “obrigadas” a cuidar das cidades, exercendo trabalhos antes delegados apenas aos homens. Durante a Segunda Grande Guerra, isso foi mais acentuado ainda, com a mulher ocupando inclusive posições nos transportes públicos, nas fábricas de munições e também nos exércitos.
Finda a guerra, os homens voltaram para ocupar os cargos que exerciam, e uma parte da mão de obra feminina foi desprezada. Aquelas que continuaram trabalhando tinham salários abaixo do dos homens.
Começou a despertar, na mulher, o sentimento dque, “se posso tanto quanto o homem, por que ganhar menos?” Ao mesmo tempo, o desenvolvimento econômico pós-guerra necessitava de mais operários. Foi a partida do movimento que viria a se chamar “feminismo”, ou “movimento feminista”.
Nesse contexto, é particularmente importante o ano de 1951, apenas seis anos após a guerra. Do ponto de vista político, nesse ano houve o fim formal da guerra (determinado pelo presidente americano Truman), a fundação da Comunidade Europeia do Carvão e do Aço (incluindo a Alemanha e a Itália) e a nacionalização do petróleo pelo Irã (expulsando os ingleses).
Nas ciências, foi feita a primeira experiência com circulação extracorpórea e iniciada a produção em série do primeiro computador (UNIVAC). Nas artes, aconteceu a primeira Bienal de São Paulo.
E, enquanto o mundo procurava a nova ordem após a guerra, o movimento feminista passou a tomar mais e mais vulto. As musas do cinema da época, começaram a desfilar de biquíni, num desafio aos costumes da época.
No Brasil, ocorreu o primeiro congresso da Federação das Mulheres do Brasil. Na Argentina, pela primeira vez, ocorreu o voto feminino. Na mesma época, a Organização Mundial do Trabalho determinou que o homem e a mulher deveriam ter igualdade de remuneração no trabalho.
E foi nesse ambiente, convulsionado econômica, política e socialmente, que os pesquisadores americanos John Rock e Gregory Pincus, a senhora Katharine McCormick (herdeira da fortuna da empresa International Harvester) e a enfermeira Margaret Sanger (amiga de Katharine) se encontraram durante um jantar em Nova York. As duas senhoras, feministas de primeira hora, eram altamente favoráveis ao controle de natalidade e ao direito de autodeterminação da mulher. E a sra. McCormic financiou as pesquisas iniciais da pílula.
Os pesquisadores se basearam em descobertas de laboratórios alemães, que, em 1938, sintetizaram estrógeno natural e depois o etinil estradiol (similar oral do hormônio feminino estradiol e utilizado até hoje em algumas pílulas anticoncepcionais) e a ethisterona (similar da progesterona).
Assim, em 1957, após o consumo estimado de 2 milhões de dólares da Sra. McCormick e uma série de pesquisas feitas com mulheres de Porto Rico, foi lançada no mercado dos Estados Unidos a primeira marca de anticoncepcional, o Enovid.
A pílula foi proibida vigorosamente pela Igreja católica. O medicamento, politicamente, foi lançado como “regulador do ciclo menstrual”, sendo colocada propositalmente sua qualidade de anovulatório como efeito colateral. Além disso, foi também indicado para mulheres casadas que não queriam filhos. Evidentemente, não seria possível indicá-lo para mulheres não casadas, pois “não havia sexo antes do casamento”.
O Enovid foi reconhecido como anticoncepcional apenas em 1960. E, em 1961, foi introduzido na Alemanha Ocidental o Anovlar, que tinha um terço da quantidade de etinil estradiol do Enovid e produzia menos efeitos colaterais.
Querendo-se ou não, houve uma grande revolução para a mulher com o advento do anticoncepcional. Embora a pílula não tenha iniciado o movimento feminista, deve a ele muito de sua descoberta.
Nos dias de hoje, os anticoncepcionais são um negócio de bilhões de dólares. E, atentos a isso, os laboratórios farmacêuticos deixaram de ter como foco de propaganda o controle de natalidade (curiosamente, o mesmo que ocorreu no lançamento da pílula!). As principais ferramentas de venda passaram a ser os efeitos secundários desejáveis que as novas pílulas podem proporcionar: melhora da textura da pele, acentuação da feminilidade, redução das cólicas menstruais, redução do próprio fluxo menstrual e melhora de problemas de humor relacionados à menstruação (tensão pré-menstrual).
Dr Jorge Haddad-Filho, médico do Serviço de Reprodução Humana do Hospital São Paulo