O sono é um processo biológico complexo e ativo, considerado essencial para a vida e a manutenção da saúde humana.
Durante o sono, o corpo realiza funções vitais, como o restabelecimento dos sistemas fisiológicos após a vigília, a conservação e restauração do metabolismo energético, o fortalecimento do sistema imunológico, a secreção de hormônios, a consolidação de memórias e a manutenção da integridade neuronal.
Noites mal dormidas, interferem negativamente no funcionamento de órgãos e sistemas, comprometendo a qualidade de vida e o bem-estar geral, e podem contribuir para o surgimento de diversas doenças.
Além disso, a privação de sono afeta a produtividade no trabalho, aumenta a tendência a erros e acidentes devido à capacidade de concentração prejudicada, e eleva o absenteísmo.
Em meio à busca por soluções para problemas de sono, a melatonina tem ganhado uma popularidade crescente.
Percebida por muitos como uma alternativa “natural” e segura a outros hipnóticos, suas vendas nos Estados Unidos da América (EUA) , por exemplo, aumentaram drasticamente, passando de US$ 285 milhões em 2016 para US$ 821 milhões em 2020.
Essa ascensão é ainda mais notável após a pandemia de COVID-19, que exacerbou os distúrbios do sono e os problemas de saúde mental.
Este texto tem como objetivo fornecer um guia abrangente e acessível sobre a melatonina, com base em evidências científicas recentes.
Exploraremos o que é a substância, para que serve, sua eficácia comprovada, os potenciais efeitos colaterais e interações medicamentosas, além de discutir a situação atual do seu uso no Brasil e as contraindicações.
Nosso propósito é informar o público geral, de forma confiável, para que decisões sobre o uso deste suplemento sejam tomadas com total consciência.
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O que é melatonina
A melatonina endógena é um hormônio produzido naturalmente no corpo humano, sintetizado e secretado principalmente pela glândula pineal.
Sua produção se inicia a partir do aminoácido triptofano, que é convertido em serotonina e, posteriormente, em melatonina, em um processo cíclico e dependente de luz.
O centro de controle desse processo é o núcleo supraquiasmático (NSQ) do hipotálamo, que recebe informações sobre as condições de luminosidade da retina.
A luz brilhante suprime a secreção de melatonina, que, por sua vez, aumenta no início da noite, atinge o pico nas primeiras horas da madrugada e diminui para níveis quase indetectáveis pela manhã e durante o dia.
A principal função da melatonina é a regulação do ciclo sono-vigília. Ela promove o sono e inibe os sinais de vigília, interagindo com seus receptores MT1 e MT2, localizados em diversas áreas do cérebro.
Além de iniciar o sono, a melatonina também pode influenciar os estágios do sono, bem como a duração e a proporção do sono REM (Rapid Eye Movement ou movimento rápido dos olhos) e NREM (Non-Rapid Eye Movement ou sem movimento rápido dos olhos).
É fundamental compreender a diferença entre a melatonina natural (endógena) e a melatonina exógena (suplementos). A produção diária natural é inferior a 100 microgramas, enquanto os suplementos geralmente contêm miligramas, uma diferença de magnitude significativa.
Nos EUA, a melatonina é classificada como suplemento dietético desde 1994, não sendo regulada pela FDA (Food and Drug Administration). Estudos já mostraram variações de até +478% na dose real presente nos produtos. Em contrapartida, em países como Reino Unido e Austrália, a substância é tratada como medicamento.
Para que serve
A melatonina exógena mimetiza as funções naturais do hormônio. Embora não tenha aprovação oficial da FDA, seu uso é respaldado por entidades médicas para diversos fins.
Usos comuns
- Insônia: recomendada pela American Academy of Family Physicians como terapia de primeira linha. Mostra eficácia modesta na redução da latência do sono e melhora da qualidade subjetiva.
- Distúrbios do ritmo circadiano: eficaz no tratamento de distúrbios como fase atrasada do sono (DSPS).
- Jet lag: amplamente utilizada no Reino Unido com essa finalidade.
- Crianças com Transtorno do Espectro Autista (TEA) e Transtorno de Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH): estudos mostram melhora significativa no tempo total de sono e no início do sono.
- Parasônias: pode ajudar indiretamente ao melhorar a qualidade geral do sono.
- Outras indicações em pesquisa: enxaqueca, dermatite atópica, ansiedade pré-operatória, doenças neurodegenerativas e condições metabólicas.
Doses típicas
- Adultos: 0,1 mg a 10 mg, geralmente 1 a 2 horas antes de dormir.
- Crianças: de 0,5 mg a 5 mg, com ajustes conforme idade e quadro clínico. Doses acima de 10 mg podem provocar acúmulo no sangue por mais de 24 horas.
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Eficácia
A eficácia da melatonina, embora promissora em diversas áreas, é frequentemente descrita como modesta.
Resultados positivos são mais evidentes em distúrbios específicos, como a fase atrasada do sono e insônia infantil em quadros neurodesenvolvimentais.
Curto e longo prazo
- No curto prazo, há redução da latência do sono e aumento discreto do tempo total de sono.
- Em crianças e adolescentes, os efeitos costumam ser mais significativos.
- No entanto, há escassez de evidências robustas de longo prazo. A maioria dos ensaios clínicos têm duração inferior a 4 semanas.
- Revisões sistemáticas indicam baixo risco de eventos adversos graves, mesmo em doses altas (>10 mg/dia), mas com poucos dados sobre efeitos cumulativos.
- A qualidade metodológica dos estudos é variável, com apenas uma fração cumprindo integralmente os critérios da Colaboração Cochrane.
Efeitos colaterais
A melatonina é, em geral, bem tolerada. A maioria dos efeitos colaterais são leves, transitórios e autolimitados.
Sonolência, cefaleia e outros efeitos comuns
Os efeitos adversos mais relatados incluem:
- Sonolência diurna
- Cefaleia
- Tontura
- Náusea
- Irritabilidade leve
- Hipotermia
Outros relatos envolvem sonhos vívidos, fadiga, palpitações e alterações de humor.
Riscos em crianças e uso prolongado
- Entre 2012 e 2021, houve um aumento de 530% nos casos de ingestão acidental em crianças nos EUA, sobretudo com gomas (gummies).
- Há preocupação com a variabilidade da dosagem real e a presença de serotonina em alguns produtos.
- Estudos de longo prazo em crianças são escassos. Um estudo holandês não observou alterações significativas na puberdade, mas outro indicou possível atraso no desenvolvimento puberal após uso contínuo por 7 anos.
- Não há estudos conclusivos sobre o impacto da melatonina na saúde óssea infantil.
- A tolerância e abstinência são raras. A melatonina não causa dependência química.
Outros pontos de atenção:
- Pode piorar a tolerância à glicose, ainda que em grau clínico pequeno.
- Em idosos, pode haver aumento do risco de quedas e fraturas.
- Em pacientes com múltiplas medicações, o risco de interações se eleva.
Interações medicamentosas
A melatonina é metabolizada pelo fígado, principalmente via CYP1A2 (enzima do citocromo P450 localizada no fígado), podendo interagir com diversos fármacos.
Destaque para fluvoxamina e benzodiazepínicos
- Fluvoxamina pode elevar os níveis de melatonina em até 12 vezes.
- Pode potencializar o efeito de sedativos como o zolpidem, levando à sedação excessiva.
- Varfarina: risco aumentado de sangramentos leves; recomenda-se monitoramento de RNI (Razão Normalizada Internacional).
- Nifedipino: redução de eficácia anti-hipertensiva.
- Pode causar hipotensão em idosos, especialmente se associada a outros medicamentos.
- Recomenda-se cautela em pacientes com disfunção hepática ou renal.
Situação no Brasil
- Segundo a Pesquisa Nacional de Saúde (PNS), 35,1% da população brasileira apresenta problemas de sono e 8,5% usa medicamentos para dormir.
- A melatonina ainda é considerada suplemento no Brasil, com venda liberada em farmácias, mas sem controle rigoroso de qualidade pela Anvisa.
- Fatores associados ao uso elevado de indutores do sono:
- Mulheres, idosos, viúvos, fumantes, pessoas com doenças crônicas e baixa escolaridade.
- Condições urbanas (exposição à luz artificial), uso de álcool e má alimentação também influenciam.
Contraindicações
Grupos que devem evitar ou usar com extrema cautela:
- Gestantes e lactantes: falta de estudos conclusivos sobre segurança.
- Crianças pequenas (<3 meses): produção natural ainda imatura, risco de excesso hormonal.
- Doenças autoimunes: a melatonina pode estimular o sistema imune.
- Doença hepática ou renal: metabolismo ou excreção prejudicados.
- Polifarmácia: risco aumentado de interações (antidepressivos, anticoagulantes, sedativos).
- Alergias a excipientes: presentes em suplementos não regulados.
Conclusão
A melatonina é um hormônio amplamente utilizado para tratar distúrbios do sono e regular o ciclo circadiano. Com um perfil de segurança geralmente favorável, ela se mostra eficaz em casos como insônia leve, distúrbios do ritmo do sono, jet lag e, especialmente, em crianças com TEA e TDAH.
Contudo, é importante frisar que a eficácia é modesta em adultos saudáveis e os estudos de longo prazo são escassos, principalmente em crianças. Há dúvidas sobre seus efeitos no desenvolvimento puberal e na saúde óssea infantil, e interações medicamentosas relevantes devem ser consideradas, sobretudo em idosos ou pacientes com comorbidades.
Além disso, a falta de regulamentação rigorosa em muitos países (incluindo o Brasil) permite variações imprevisíveis na qualidade dos produtos, incluindo presença de substâncias não declaradas como serotonina. Por isso, a melatonina deve ser tratada com seriedade, como qualquer substância com efeitos farmacológicos.
Recomendações práticas
- Priorize a higiene do sono: evite telas à noite, mantenha horário regular, quarto escuro e silencioso.
- Consulte um profissional de saúde antes de iniciar o uso, especialmente em crianças, idosos e pessoas com doenças crônicas.
- Use a menor dose eficaz: comece com 0,5 mg e aumente gradualmente se necessário.
- Evite combinações com sedativos, antidepressivos e anticoagulantes sem orientação.
- Prefira produtos regulados e com indicação clara de dosagem.
- Para crianças, sempre busque apoio médico, pois a primeira linha de tratamento deve ser comportamental.
A Associação Paulista para o Desenvolvimento da Medicina (SPDM) apoia ações de conscientização sobre saúde do sono e o uso responsável de substâncias como a melatonina, sempre com base em evidências científicas.
Ao administrar hospitais e serviços públicos de saúde em parceria com o Sistema Único de Saúde (SUS), contribui para levar informação de qualidade e incentivar hábitos que promovem qualidade de vida. Saiba mais em www.spdm.org.br.
Perguntas frequentes
1. Quais são os efeitos colaterais mais comuns do uso de melatonina?
Os mais frequentes são sonolência diurna, dor de cabeça, tontura, sonhos vívidos e irritabilidade leve. A maioria é leve e transitória.
2. Crianças podem usar melatonina?
Sim, especialmente em casos de TEA ou TDAH. No entanto, o uso deve ser orientado por um profissional de saúde. Há riscos relacionados à duração do tratamento, dosagem incorreta e produto não regulamentado. A higiene do sono é sempre o primeiro passo.
Fontes Consultadas
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