Tudo na vida de Nelita (Bárbara Paz) parece ser oito ou oitenta, tudo ao extremo. Com ela não há meio termo. Tem uma mãezona – a Nora (Renata Sorrah) – e um pai (Gibson, interpretado por José de Abreu) que, mesmo presente fisicamente, é inacessível, quando não insensível.
Com seus filhos, a fórmula é a mesma: enquanto Cesáreo (Johnny Massaro) é muito carinhoso e dedicado, a frívola Belisa (Bruna Linzmeyer) transborda ressentimento em relação à mãe.
A pomposa e milionária família Stewart é toda disfuncional, especialmente no que confere à comunicação: ou esta é inexistente ou cheia de duplas mensagens. E é nesse meio que Nelita precisa se virar para conquistar seu lugar. Constantemente comparada à irmã, que morreu muito cedo, a moça é diagnosticada como Bipolar. Vive parte da vida em uma clínica psiquiátrica.
Para ela, tudo é permitido, não há julgamento ou consequências de seus próprios atos. Com isso em mente – ou não – Nelita desenvolve ferramentas que a ajudam a lidar com as pessoas e com o seu meio. Sendo assim, ela afirma que nela estão presentes e se revezam duas pessoas bem diferentes: uma doce e desprotegida mocinha arrependida e outra inconsequente, espalhafatosa e vingativa.
Estamos falando de uma personagem fictícia e, como ficção, podemos considerar a licença poética da obra Regras do Jogo, escrita por João Emanuel Carneiro e dirigida por Amora Mautner. Mas, para contribuir com o debate aberto pela personagem, podemos dizer que os sintomas cabem mais a um Transtorno de Personalidade de base do que ao Transtorno Afetivo Bipolar em si.
Transtorno Afetivo Bipolar
O Transtorno Afetivo Bipolar, a grosso modo, é caracterizado por variação de humor visível, mas diferente do que acontece com a personagem, em que fases de mania, ou euforia (o bom humor), são substituídas por fases de depressão e tristeza. E cada fase dura um período determinado.
Na novela, a Nelita tem crises desencadeadas por acontecimentos pontuais, como quando ela é confrontada em uma situação de tensão, quando se sente frustrada, quando sente atração sexual e desejos intensos e, dessa maneira, ela tende a consumir bebidas alcoólicas, tem comportamentos de risco ou hipersexualizados.
“Um diagnóstico precoce e descuidado pode acabar escondendo a doença de base. O comportamento da personagem é mais próximo de um Transtorno de Personalidade, que chamamos de Dissociativo, e que parece fazer mais sentido no caso dessa personagem da novela”, explica Daniely Marin Zito, psicóloga do Ambulatório Médico de Especialidades Psiquiatria (AME) Psiquiatria, gerenciado pela SPDM.
O Transtorno de Personalidade é desenvolvido perto da adolescência. Trata-se de uma “doença essencialmente do vínculo”, especificou a psicóloga, em que o sintoma de dissociação, isso é, quando se assume comportamentos completamente opostos ou duplas personalidades, pode ser um dos mecanismos de defesa da mente que o indivíduo utiliza para lidar com as pessoas e o ambiente à sua volta.
“É comum que esse transtorno tenha relação com algum abuso sofrido na infância, com algum tipo de negligência e com a qualidade da relação com as primeiras figuras de referência da criança, no caso: os pais”, explica a psicóloga. “É consequência da dificuldade de elaborar situações vivenciadas como traumáticas ou de perdas, o que tende a eclodir e a ser intensificada na fase da adolescência”, completa.
Nesse caso, as variações de humor podem ocorrer de forma repentina, desencadeadas por algo ou alguém. E não estamos falando do conceito de dupla ou múltiplas personalidades, como o que vemos no cinema. “No Brasil, aceitamos que a pessoa, que é uma só, só tem uma personalidade, tenha dois ou mais lados, que podem ser bem delineados e evidenciados em diferentes ocasiões, nas quais é difícil o enfrentamento e a responsabilização dos próprios atos por parte da pessoa doente”, explica Daniely.
Nessa abordagem, a pessoa utiliza as personas quando lhe convém e pode acabar perdendo a noção de que faz isso. O processo pode até ser inconsciente, utilizado para obter alguma coisa, para se livrar de responsabilidades, ou ainda para se punir de algo, mesmo que a culpa e a vergonha permaneçam presentes, assim como a memória de cada evento em qualquer dos estados.
“É interessante notar que os portadores de Transtorno de Personalidade geralmente têm uma inteligência elevada, acima da média. Não se trata de um problema cognitivo. No caso da Nelita, ela é uma artista, e esse é um lado bem positivo, pois ela se utiliza da arte para extravasar, o que é muito saudável, porque, quando ela pinta, não causa mal a ninguém, nem a si própria, é um meio de lidar com isso que está dentro dela. O que fica muito prejudicado é o relacionamento interpessoal. O que é um problema é o empobrecimento de recursos emocionais, a criação de vínculos afetivos duradouros e positivos”, esclarece a psicóloga.
Disfunção familiar
A família toda fica afetada quando um membro da família sofre com um distúrbio mental, e isso fica mais evidenciado quando esse sofrimento altera o comportamento em extremos: “A pessoa doente vira uma espécie de bode expiatório da família”, segundo Daniely, justificando tudo o que está fora da ordem. No caso da personagem da novela esse é um fator que está claro.
Nelita recebe frequentemente mensagens duplas: seu estado requer cuidados e atenção especiais, dispensados pela mãe e pelo filho; e é um estorvo para o pai, uma figura presente, porém inacessível. Sua filha parece querer se vingar, ou machucar para extravasar um sentimento que ela própria, Belisa, não consegue entender. E para completar o caos, a paternidade dos seus filhos é desconhecida, talvez não por todos, mas é tratada como um tabu, algo de que não se pode nem falar em voz alta.
As reações de Nelita frente à dinâmica familiar são todas extremadas: amor, apego e dependência em um minuto; e, no outro, raiva, revolta, vergonha e distanciamento, abandono. Sua família disfuncional não consegue apoiá-la como deveria.
Tratamento
“Não falamos em cura para estes casos, que são crônicos, mas é possível tratá-los. E o objetivo do tratamento é alcançar o equilíbrio, a minimização dos extremos, de forma que o paciente possa conviver com as partes de sua personalidade, com essa desintegração, sem sobressaltos, comportamentos impulsivos, de risco e insalubres, a fim de ter a vida de adulto, comportando-se como tal, responsabilizando-se pelas consequências de seus atos, vivendo com qualidade e com menos sofrimento psíquico”, explica Daniely.
O tratamento, segundo a psicóloga, deve incluir sessões de psicoterapia que possam mostrar ao portador do transtorno a utilização inconsciente de comportamentos diferentes com a finalidade de se obter algo e de se livrar da responsabilidade de seus atos, por exemplo, e, principalmente, para identificar e nomear os sentimentos que o levam a ter esse funcionamento.
“Além disso, deve haver um cuidado por parte especialmente dos cuidadores, de não reforçar o diagnóstico do paciente, de forma a não rotulá-lo ou resumi-lo a um código ou à uma doença. Antes de ser alguém doente, é uma pessoa, com tudo o que isso implica. Tratamos a totalidade dessa pessoa, estimulando a parceria dela e sua parte ativa no tratamento, para que o seu sofrimento, que é legítimo, seja aliviado”, explica a psicóloga.