“A biotecnologia vai criar desigualdades”, disse a aluna do ensino médio depois de ouvir minha aula sobre as novidades das pesquisas em genética, genomas e células-tronco. “Sim, professora, porque quem vai ter acesso a essas tecnologias médicas sofisticadas? Só uma classe privilegiada! Isso não é justo!”.
“Sem dúvida, é profundamente injusto”, respondi, “mas não são as biotecnologias que criarão a desigualdade – esta já existe com a medicina atual… Comparem o acesso à saúde que suas famílias têm com aquele dos que dependem do SUS. Acho lindo você se preocupar com as desigualdades, mas elas já existem.”.
“Sim”, insistiu ela, “mas a coisa vai piorar! Como Yuval Harari, autor de ‘Sapiens’, prevê em seu livro, com a capacidade de modificarmos o genoma de um embrião ou de fazer terapia com genes e células-tronco, criaremos os super-humanos e…”.
“Espera aí”, interrompi: “NÓS JÁ SOMOS SUPER-HUMANOS! Sim, nós, elite, com as oportunidades que temos já constituímos um grupo de super-humanos quando comparados com os outros 90% da população”. A sala ficou em silêncio. “Façam o seguinte: vão a uma periferia – aliás, nem precisa ir longe, vão a Paraisópolis, e procurem jovens da sua idade. Observem sua pele, seu cabelo, seus dentes, sua massa muscular ou sua obesidade. Conversem com eles. E comparem com vocês mesmos. Comparem suas mães, que podem fazer ginástica, se alimentar de forma saudável, fazer seus check-ups anuais, tratar do cabelo, da pele, das unhas, das varizes, com as mães desses jovens, da mesma idade… Sim, NÓS JÁ SOMOS SUPER-HUMANOS!”.
Pois é, imaginem o climão que ficou na sala… Achei curioso que a consciência social exista – afinal, aquela aluna estava de fato preocupada com as desigualdades – mas que se trate o problema como algo que vai acontecer no futuro, decorrente das tecnologias que desenvolvemos hoje. Talvez seja penoso demais admitir que já vivemos agora o cenário que ela projeta para o futuro. Enfim, bacana a preocupação, e bacana também o desfecho da professora, que terminou o evento chamando atenção para a responsabilidade de nós, super-humanos, na construção de um mundo mais justo.
Por Lygia da Veiga Pereira
Fonte: As Meninas – http://www.leiaasmeninas.com.br